por Miguel Cardoso
Eh, pá, no que eu me fui meter
– é que Mulher ao Mar e Corsárias tem, para além de dois lados, em espelho, muita ponta (ou borda e dobra) por onde se lhe pegue
“Muitas portas, muitas serventias, não aprovo.”
dizia o D. Francisco Manuel de Melo na sua Carta de Guia de Casados,
a propósito da arte de manter esposas resguardadas dos estorvos e tentações do mundo:
“Quisera eu as casas de hum só gargàlo.”
Podia ir por aí.
Quero dizer, pelo seu contrário, isto é,
pela arte de não se guardar de inconveniências, que atravessa todo o livro
melhor dizendo, o livro é atravessado tacitamente pelas perguntas:
O que fazer de tais tentações e estorvos?
Chamar por eles, dar-lhes a volta?
Como tecê-los agora, de novo?
Tecer-lhes um estojo onde os guardar?
Guardar ou não deles a distância?
Podia, com algum esforço, inventariar os espinhos, as máculas, os emaranhados, os pontos onde surgem com mais nitidez as feridas, o que sobra delas, mas igualmente as felicidades, o que ainda prometem.
Talvez consiga falar disto tudo, de algum modo.
Prefiro, em todo o caso, ser parcial.
Então:
Eh pá, no que eu me fui meter
podia ser – digo eu – um primeiro verso de um poema da Margarida
e o poema seria ao mesmo tempo o eco desse embaraço e o próprio embaraço
Aliás, correndo um pouco ao acaso o livro encontramos muitos primeiros versos que são, bem vistas as coisas, uma forma de dizer isto mesmo:
“Feiticismo”: “É verdade que quando eu contigo” (MAM, 31)
(no que eu me fui meter)
“My Fair Love”: “claro amor vinte anos no fundo sabes” (MAM, 39)
(no que eu me fui meter)
“Hóspede Suspeito”: “Incrível como o nosso sofrimento” (MAM, 41)
(no que eu me fui meter)
E por aí fora. Pois bem,
– éramos –
nós. Ora aí está, dispense-se a poesia
de flexões de sintaxe e da narrativa. Haja
a sensatez de não querer decifrar nada
(ANIVERSÁRIO II, MAM, 53)
Ora aí está. Mas quando digo
Eh, pá, no que eu me fui meter
e digo, para mais, que podia bem ser um primeiro verso de um poema da Margarida
aponto para outra coisa, mais particular,
que não se prende sequer com o embaraço de desembaraçar sentidos
(o meu embaraço, agora, mas também o dos próprios poemas face àquilo em que se meteram)
Falo, sim, de uma vocação para o vocativo
Não tanto o Eh (de Eh, pá). Mais o Ó
Margarida, Senhora do Ó (EC, 36)
Uma pessoa mais dada a trocadilhos, diria: Mulher, Ó Mar
Dá-se o caso de o primeiro poema de “E Corsárias” (escrito com/para/a Maria Velho da Costa) ter como título “Ó Parda”.
E outro começa
ó mar edulcorado que todo se quebrou de Fiama a Ana (“Divertidas”, EC, 98)
Mas também não é bem disso que falo.
É algo ao mesmo tempo mais subtil e ao mesmo tempo – é essa a minha hipótese, pelo menos – de maior alcance.
Fazendo um pouco de batota (que tentarei justificar), incluo no Ó, ou na apóstrofe, não só os Eus e Tus e tis, os muitos contigos e não menos Nós, e as suas singulares e tortuosas distâncias. Por exemplo:
Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
mas também,
seguindo uma linha de Jonathan Culler, que escreveu a este propósito (no ensaio “Apostrophe”, em The Pursuit of Signs), o poema no seu todo.
A lírica é, sugere ele, apostrófica. E nem de propósito, escreveu a Margarida, mais ou menos isto:
Talvez lá no fundo acredite
que os poemas são todos sensivelmente
apostróficos em toda a parte, mas então
necessariamente os da Margarida são mais
“Ressabiadas” (MAM, 93)
Desdobremos.
A apóstrofe serve-me para tentar responder a uma pergunta.
Não sei cheguei à pergunta certa – seria mais de meio caminho andado. Mas a que tinha e que vos trago é esta:
Como (porque) é que uma poesia tão vincadamente escrita
– onde a escrita é matéria e meio e não apenas veículo, que não se dá ares de informalidade, que não finge ser uma voz natural, que inscreve o seu texto numa relação com outros textos, que usa e torce géneros e formas tradicionais; que, sem arredar o coloquial e o informal, faz cerimónia, explorando as singulares formas de arrumação e atenção que estes diferentes géneros proporcionam, que as cesuras e demais instrumentos recortam, etc.
quanto me limita me ilumina
Retomando: como é que (ou porque é que) uma poesia tão vincadamente escrita
é tão marcada pela ideia de diálogo. Melhor dizendo, pela forma do diálogo.
A recorrente relação entre o eu e o tu como lugar destes poemas é, por um lado, evidente. Por outro lado, o próprio diálogo, claro, é uma convenção lírica com uma longa história. Mas que forma assume aqui a convenção? Está ao serviço de quê? O que está em jogo nesse jogo?
O que é que isto nos diz, fazendo brotar uma pergunta do solo desta, sobre o tipo de pacto que estes poemas celebram?
E é, diga-se de passagem, um livro cheio de pactos. Diria até: de contratos.
Muitos dos quais não se cumprem, ou foram quebrados. E foram quebrados, paradoxalmente, apesar de não terem sido formalizados. O poema é o processo, precisamente (mas esquivamente) de, perguntando, formalizar o que era tácito:
Foi circo ao cerco, gesto ou estilo
o acto de nos abraçarmos?
(MAM, 45)
Como quem pergunta (de uma amizade, de um amor, de um encontro fugaz, de um momento):
O que houve entre nós?
Melhor dizendo: O que há, agora (agora que penso nisso), entre nós?
(Esta deslocação temporal é essencial. Espero que consiga explicar isto adiante.)
Entre nós, entenda-se: entre o eu e o tu do poema, entre o leitor e o poema, entre nós que aqui estamos. Entre todos.
Mas então a apóstrofe?
Perdoem-me a breve lição, que para mais será menos rigorosa do que devia.
A apóstrofe é, claro, uma figura retórica ou estilística.
Na retórica, é um aparte com uma componente coreográfica, um virar costas à assembleia, ao juiz (enfim, ao ouvinte, interlocutor, a quem quer que o discurso seja dirigido) para se dirigir a outra pessoa ou entidade.
O termo, aliás, simplificando, significa uma “viragem” (o termo estrofe significa viragem, curva, volta) “para longe de” (o prefixo apo– significa afastamento).
Na poesia, marca um ponto no discurso em que a voz poética se dirige a alguém ausente, a um objecto inanimado, ou a um conceito.
Ora, o que Jonathan Culler sublinha no seu ensaio que dedicou à apóstrofe que já mencionei é o embaraço que ela gera.
Com isto ele quer dizer, muito literalmente, os risinhos com que tantas vezes é acolhida.
Mas igualmente a forma como os críticos viram tantas vezes as costas às apóstrofes que encontram nos livros de poemas. Elidem-nas, reprimem-nas.
Isto será em parte porque o lírico de algum modo se define pela repressão ou evasão da voz falada. Uma negação do vocativo.
Mas também porque a apóstrofe soa como algo de convencional. É onde o ridículo e o sublime tantas vezes se encontram.
Diz o Culler: “a apóstrofe é a figura de tudo o que há de mais radical, embaraçoso, pretensioso e ilusionista [mystificatory] na lírica”. Mas ao mesmo tempo, acrescenta, pode ser tida (algo perversamente) como o que é mais próprio do lírico. (TPS, 137).
Numa palavra, repetindo o que já disse: a Lírica é apostrófica.
Culler lembra que é costume citar-se o aforismo de John Stuart Mill, segundo o qual “the lyric is not heard, but overheard” [A poesia ouve-se, mas por acaso, tresouve-se]. Não é nada connosco. “O poeta lírico habitualmente finge estar a falar consigo mesmo ou com outra pessoa: (…) uma Musa, um amigo, um amante, um deus, uma abstração personificada,… O poeta, por assim dizer, volta as costas para os seus ouvintes” (citando o John Stuart Mill)
O gesto apostrófico é o gesto de invocar, de trazer à cena o que está ausente.
E, no caso da lírica, de estabelecer uma relação entre o eu e o outro dentro de uma estrutura aparentemente solipsista – o eu a falar consigo mesmo (a Margarida, se quisermos fazer aqui esse salto, a falar consigo mesma)
Mas passa-se ainda outra coisa, nesta ideia do gesto apostrófico: Ó
Para já, é um gesto.
Mas mais: entendido mais genericamente como o gesto da poesia, é o que assinala uma interrupção (das coisas como elas são, dos tempos como eles correm) e um transporte dos elementos do plano em que existiriam, antes ou fora do poema (onde terão acontecido, ou passam a ter supostamente acontecido) para o plano do poema e para o tempo do poema. Para um agora onde cabem todas as ausências. Onde as coisas estão presentes, tantas vezes – pensando nos poemas da Margarida, na medida em que se perderam.
O Ó abre um lugar para o que não está aqui. E abre um tempo para o que estava perdido.
A viragem apostrófica é esta: do referente, das suas circunstâncias, necessariamente ausentes, para o lugar e situação que é o poema.
Isto visto de um outro ângulo.
E peço mais uma vez emprestada a iluminação a outros. Neste caso, a Blanchot.
“Houve sempre da parte dos homens um esforço pouco nobre para desacreditar as Sereias acusando-as grosseiramente de mentira: mentirosas quando cantavam, enganadoras quando suspiravam, fictícias quando se lhes tocava; completamente inexistentes, de uma inexistência pueril que o bom senso de Ulisses bastou para destruir” (Blanchot)
Isto serve a Blanchot para contar a história, a génese, se quiserem, do romance. Da luta obscur
a entre a narrativa e o encontro com as Sereias.
Esta é a história, por outras palavras (ainda de Blanchot) da passagem do canto imediato para o canto contado, “por isso agora aparentemente inofensivo, ode que se tornou episódio” (O Livro por Vir, 13)
Mas há também o caminho inverso. O da Margarida, por hipótese.
O episódio que se torna ode. O encontro que agora surge à distância, contado, sim, mas também cantado: Ó
Já não o romance, mas o poema. A sua relação particular com o encontro. Onde evocá-lo não é desacreditá-lo. Muito menos passá-lo pelo crivo do bom senso.
Os poemas da Margarida estão cheios desses encontros (também com uma outra de si mesma) que são chamados ao poema, evocados. Agora. Agora que penso nisso.
A apóstrofe é a figura da estranheza que é não contar, mas cantar. Chamar.
Os encontros têm lugar, contudo, porque há sempre – entre os eus e tus, e não só – um hiato.
E para o preencher, diz o poema “Intercidades”,
“as palavras valem menos do que os barcos” (MAM, 20)
Quem diz encontro, diz entendimento, onde não há.
“Entende:”, dois pontos. Assim começa um certo verso de “Nota sobre a Experiência do Eterno” (MAM, 78).
E:
“Desconfio, Tolstói, que não nos estávamos a entender” (EC, 30)
Ou:
“bom seria sermos quites porém ainda não em paz”
Porque ainda não em paz, então o poema.
E porque há tantas coisas que se pedem. Daí:
“Transforma o que perdeste lá atrás” (EC, 42)
Há também “As carícias que não se ousaram” (EC, 19)
E há o sítio “onde nunca te soube perdoar” (EC, 34)
E
“Peço de ti o que não te ocorre perguntar
Para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo” (EC, 39)
Para que porventura “se sane feridas em abrindo brechas” (EC, 75)
“mesmo que falhe nisto: consolar-te” (EC, 76)
“Tem-me sido esquiva a graça/ de ombro alheio, quanto mais nudez” (MAM, 41)
“e eu regresso aqui porquê?” (MAM, 41)
(que também podia vir antes de tantos destes poemas)
“e perco o pé com ganas sufocantes / de regressar ao sítio que deixei” (MAM, 47)
Em suma,
“Porque as nossas vidas são falhas” (EC, 54)
Ou não haveria poema.
Mas “tenta vir se chamo por favor” (MAM, 78)
Então o que há? O Ó.
Ou seja,
Apostróficos não são só os versos, por exemplo, de “De Safo, também um fragmento”:
“Que sono leve prematuro te cerrou as pálpebras
Ó Mulher, que dantes as abrias como a bainha da nudez?” (EC, 19)
Ou
“Como a ti te desejaram, Ó bela”
Mas quando se escreve/ou se lê:
este corpo, ou e agora isto, ou esse amplo espaço que te abri ou, mais concretamente, o quarto a cuja janela /escrevo
Quando se escreve
Quando eu contigo [MAM, 31]
esse quando, esse eu, o tu com que se relaciona são prefaciados, rodeados por um enorme Ó
que é o quando e o onde que o poema abre
Assim:
Ó este corpo,
Ó agora isto,
Ó esse amplo espaço que te abri
Ó o quarto a cuja janela /escrevo
Ou seja,
Abre o lugar estranho, artificioso, deslocado, que é um poema.
Mas os próprios poemas – e ainda mais o livro no seu todo – ao mesmo tempo que abre um espaço próprio, resiste a quem o investe, sem mais, de autonomia (de solidão?)
Sem que isso diminua – pelo contrário – o acto de chamar.
O eu destes poemas ata-se e desata-se de tus a toda a hora
O poema não vai, simplesmente, à sua vida.
À sua vida de poema, entenda-se.
É poema, ou seja, não é conversa, carta, testamento, recado.
Mas sobra sempre qualquer coisa dessa arrumação sossegada da coisa que assenta bem na página.
Não vai à sua vida, como não vamos nós. Cada um de nós.
Como não vai o passado.
Como não vai, sei lá, aquela coisa sem importância que aconteceu uma vez.
Aquele Verão da família no Porto Santo.
Nem o Mosteiro de Odivelas vai à sua vida.
O poema não deixa: Ó
É verdade que quando eu contigo
diz um primeiro verso
e a verdade constrói-se, quando muito, a partir daí
Diria que esta é uma espécie de chão ético de Mulher ao Mar:
Que, “Se o rigor do verso não visa qualquer prova
senão procura –“ (MAM, 15)
dizer Ó não é, afinal de contas, um virar de costas.