AMAZÓNIA – Antologia e novos poemas
Juan Carlos Galeano
Edição de Lukazk Kraj e Patrícia Vieira
Tradução de Saturnino Valadares e Zemaria Pinto
Capa e Separadores de Otoni Moreira de Mesquita
Edição Bilingue – 184 pgs
PVP – 18,00 € – Comprar
Livro apoiado pelo PROJECTO ECO do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra https://eco.ces.uc.pt/
Juan Carlos Galeano é poeta, nascido na região amazónica da Colômbia. Além do interesse pela espiritualidade ecológica indígena, é autor de diversos livros de poesia e do livro Cuentos amazonicos (2016). Galeano também é tradutor de poesia norte-americana e diretor dos documentários The Trees Have a Mother (2009) e El Río (2018) sobre os seres espirituais das florestas e rios amazónicos. É professor de literatura e cultura latino-americanas na Florida State University, nos Estados Unidos.
https://jcgaleano.wixsite.com/juan-carlos-galeano.
(Prefácio)
(Re)tornar à Amazónia
Lukasz Kraj e Patrícia Vieira
Tal como a Amazónia geográfica e empírica, a Amazónia de Juan Carlos Galeano é um espaço polimorfo, que escapa a categorizações rígidas de géneros literários, assim como a outras classificações estéticas ou a definições ideológicas pré-concebidas, através das quais o pensamento dito ocidental estrutura e cataloga o mundo. Esta multiformidade—esta mobilidade, este ser-entre—começa no próprio contexto biográfico do poeta. Nascido na Amazónia colombiana, Galeano vive há muitos anos nos Estados Unidos da América, onde trabalha como professor de poesia na Universidade Estadual da Florida, tendo ainda assim mantido laços estreitos com a Amazónia não só colombiana, mas também peruana. Embora a poesia de Galeano não possa, de modo algum, ser reduzida a um reflexo de vivências pessoais, o contraste entre o passado e o presente, o local e o global, traduzem-se em distintas formas de pensamento e de escrita: o registo do quotidiano e o carácter imediato, tangível e concreto da selva, junto à mediação inerente ao trabalho da memória; as referências culturais das populações indígenas e ribeirinhas da região, aliadas ao lastro da literatura mundial e à textualidade académica.
Na obra de Galeano vemos a Amazónia a partir de dentro—um micro-mundo familiar—e, simultaneamente, sob um prisma global, que permite entender a região como um espaço sócio-bio-cultural central para o equilíbrio planetário. É esta tensão entre perspetivas diversas—uma forma de perspetivismo literário, tomando de empréstimo o feliz termo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para descrever a mundivisão dos povos amazónicos—que faz da escrita de Galeano uma porta de entrada para o mundo amazónico, que reconhecemos simultaneamente como diferente e estranhamente próximo, longínquo mas acessível para uma leitora que vem de outro contexto cultural e geográfico.
A multidimensionalidade espelha-se na antologia já na esfera do género (ou da ausência deste) e da diversidade formal. Se, ao nível de toda a coleção, a forma dominante é a da narrativa oral—evocando proximidade com uma Amazónia vivida, tal como o autor explica na sua introdução—, uma leitura atenta de alguns ciclos ou poemas sugere que Galeano dialoga com configurações clássicas da literatura mundial, tais como o bestiário (Entidades da Floresta) o haiku, e, obviamente, os aforismos.
Observamos a mesma heterogeneidade nas estratégias de construção imagética da região. A cultura amazónica que Galeano nos apresenta é fortemente marcada pelas cosmologias indígenas e ribeirinhas, distanciando-se das fantasias mitificadoras que vêem a floresta amazónica como epítome de uma natureza primordial e intocada. O autor guia-nos através de um espaço historicizado, integrado numa economia e cultura globalizadas, que coexistem com visões animistas do mundo, de acordo com as quais seres humanos e mais que humanos se entrelaçam numa sociabilidade partilhada. Estas sobreposições produzem resultados surpreendentes, reminiscentes das quimeras surrealistas e da literatura pós-moderna que mescla géneros, estilos e estéticas. Um exemplo seria o poema “Amazon Show,” em que a tartaruga-empregada-de-mesa serve uma bebida americana e pretende ir para o Tibete estudar meditação, numa mescla de elementos amazónicos e de referências da cultural global de massas. O espetáculo descrito no poema termina abruptamente quando os macacos arrancam as suas cabeças para as atirar ao público. Nesta imagem grotesca manifestam-se algumas das tendências que definem a obra de Galeano: a espontaneidade que caracteriza o mundo amazónico, aliada a um desarmante gesto de ironia lúdica que lida com o que é não normativo evitando cair num ecologismo superficial.
Um outro exemplo do filão lúdico da escrita de Galeano é o poema “Jiboínhas,” em que a transformação dos dedos de um homem em serpentes desencadeia reações inesperadas a nível planetário. Um investido japonês procura monetizar o acontecimento, enquanto que os espetadores televisivos, ávidos de novas sensações, assistem ao show em direto, mas a uma distância segura da fluidez ontológica das mãos-jiboínhas, que revelam uma perturbadora aproximação entre os seres humanos e os répteis: “os canais de TV proliferam as notícias / registando novas conexões entre os animais / e os homens.”
Já no poema “Árvore,” a proximidade entre seres humanos e mais que humanos pauta-se não pelo tropo da metamorfose, mas sim do amor entre um homem e uma árvore, que vivem uma relação de intimidade. Esta dendrofilia torna-se de imediato notícia—”A Life e as revistas ecológicas contam aquela história / de amor ao mundo inteiro”—até o homem decidir abandonar a planta para encetar nova ligação com um rio ou com uma nuvem. É com uma leve ironia e inabalável tranquilidade que os poemas descrevem os múltiplos laços que unem seres humanos e mais que humanos e a estranheza dessa com-vivência, quando abordada da perspetiva do complexo mediático-científico ocidental. Através desta leveza lúdica, Galeano aborda questões fulcrais da contemporaneidade amazónica, como a transformação de plantas e animais em produtos e a exploração extrativista de recursos, de um modo quase incidental, sob a forma de alusão, sem resvalar para um discurso programático ou proselitista.
Igualmente relevante neste contexto é a própria natureza do espetáculo, da performance ou do jogo—abundantes nas páginas de Amazónia—, que combina o imediatismo, atualidade e proximidade com a distância, já que os gestos em cena são signos que apontam sempre para além de si mesmos. Galeano explora esta dupla natureza do lúdico: a lógica do espetáculo que muitas vezes rege a Amazónia, quando vista de fora, sugere que, por detrás do que parecem ser, à superfície, situações irreais, sinais ilegíveis e imagens perturbadoras, existem forças e relacionamentos mais profundos, que não deixam de se reger por uma coerente lógica interna. Esta lógica nem sempre é facilmente decifrável, como diz um dos aforismos: “para aqueles que não a podem conhecer, a Amazónia apresenta-se como o que não é.” Para os que a veem de fora, a Amazónia é um jogo, apresentando-se, paradoxalmente, numa dialética do velar e desvelar, cujas regras só se compreendem pela negativa.
Na antologia, porém, as diferentes perspetivas ou polos não assumem a forma de dicotomias rígidas, tão comuns na tradição do pensamento ocidental. Pelo contrário, diferenças e divergências misturam-se, sobrepõem-se e iluminam-se mutuamente, dando origem a interações e movimentos dinâmicos. A Amazónia de Galeano é um espaço irredutivelmente singular, personalizado, por vezes com tonalidade oníricas, na medida em que é acedido sobretudo através da memória—embora esta seja uma poesia dominada pelo tempo presente, o que leva a um questionamento da unidirecionalidade e a linearidade do tempo. Mas quando o sujeito poético evoca a Amazónia através da memória, a realidade recriada revela-se profundamente coletiva, comunitária, vivida e construída em conjunto com outros seres: humanos, animais, plantas, o vento, os rios e assim por diante. O espaço do poemário é, assim, uma Amazónia individual e coletiva, um espaço ao mesmo tempo empírico e imaginado.
Quem são estas entidades e qual é a natureza deste singular-coletivo? Onde se situa a fronteira entre o eu histórico e extra-textual, que cresceu à sombra da guerra (“Com as primeiras explosões da guerra e os buracos / nas paredes, os meus pais correram para a selva”), e a voz mais impessoal e difusa dos Aforismos Amazónicos? Ou ainda entre o participante dos acontecimentos narrados, e o observador ou comentador casual desses acontecimentos? Tais distinções não parecem fazer sentido no contexto da comunidade floresta, na qual o eu é singular e plural, realidade tangível e parte de uma mundividência cultural coletiva. A poesia do autor é movida, como este escreve na introdução, pelo “desejo de sair de nós próprios e de pensar a partir do ser dos outros,” ou seja, pelo desejo de ser outro que se plasma na fluidez e múltiplas metamorfoses que caracterizam o imaginário da região. As leitoras são convidadas a navegar este fluxo dinâmico de imagens hipnóticas e híbridos inquietantes que chegam até nós sob o formato de uma história que reclama presença, atenção e cumplicidade. Mais uma vez, ia antologia—desta feita na fronteira entre texto e leitora—parece esbater distinções e aproximar o que é conceptualmente afastado, convidando-nos a uma viagem através do lugar simultaneamente familiar e remoto que é a Amazónia.