Apresentação de CISCO, de Elisabete Marques (Mariposa Azual, 2014)
por Miguel Cardoso
Acontece Manoel de Barros ter escrito “Matéria de Poesia”
Acontece Manoel de Barros ter escrito:
Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão…
Acontece um cisco ser algo que acontece
Acontece uma mosca
Acontece uma mosca ser algo
Acontece um cisco ser algo que não se enxota
Acontece uma mosca de pensão ser algo que não encontra a sua explicação na pensão, apesar de Balzac
Acontece que um cisco não se enxota
Acontece que alguém escreveu sobre moscas
Acontece alguém ter perguntado:
Afinal de contas, o que significa a mosca?
Acontece ter respondido:
A mosca significa – a insignificância
A mosca é uma espécie de inconsciente lateral ou diagonal, que mais do que nos alienar nos distrai – que literalmente nos chama à parte – de nós próprios. Mas talvez isto seja demasiado dramático. Pois é precisamente da seriedade que a mosca nos distrai. A mosca significa o engodo, o chamamento ridículo e imperioso não da ausência de sentido (que tem a sua grandiosidade e forma e destino) mas da insignificância [1]
Acontecem moscas
Acontece ter começado a pensar neste livro a partir de um cisco, mas ter sido levado por uma mosca
Acontece ter ido atrás da mosca
Acontece Adorno ter dito: O cisco no olho é a melhor lupa. A mosca será porventura o melhor guia.
Acontece vir algo de algures
Acontece Joshua Reynolds, um dos grandes teóricos do neoclassicismo, ter falado, horrorizado, de nódoas, defeitos, imperfeições, deformidades, excrescências. Como ciscos no caminho da visão.
Acontece um pequeno cisco de conteúdo, um vinco na forma, uma mosca na sopa.
Acontecem-nos moscas
As moscas acontecem aos lugares
(já chego ao livro da Elisabete)
Acontece que, enquanto estava a pensar no que dizer aqui, ter tido algumas conversas sobre o lugar de onde se escreve. Ou, melhor dizendo (porque o pronome reflexivo é aqui enganador), o lugar de onde, e porventura onde, a escrita se escreve.
Acontece ter sugerido: “Não quero uma voz, mas criar lugares onde algumas vozes se encontram e desencontram.”
Acontece uma amiga ter respondido invocando a impossibilidade de escapar ao lugar onde estamos, e sugerindo que dele fizéssemos um “lugar discreto”
Acontece várias pessoas terem dito à Elisabete que Cisco era difícil.
Acontece ter imaginado que lhe diziam: «É um lugar difícil»
Acontece provavelmente não haver outros.
Acontece o Miguel Manso me ter convidado para apresentar um livro dele, aqui na Barraca, chamado “Aqui podia viver gente”.
Acontece ler-se aí:
poeta – e restantes – que a terra do poema vos seja leve
e acontece eu ter ficado a pensar na terra do poema, que “aqui” seria esse onde podia viver gente, e no imperfeito do verbo viver, e na leveza.
Acontece o Miguel Manso ter escrito um livro chamado Um Lugar a Menos, onde se lê
Cada livro que for sendo publicado não ocupará apenas o seu lugar
Acontece o Daniel Faria ter escrito “Homens que são como lugares mal situados”
Acontece que a Elisabete escreveu, no início do poema “Guia de Aves”:
Ainda há
lugar para pássaros
Acontece a
Acontece um dedal imprevisto aparecer num poema da Elisabete e ser
doravante um pequeno lugar
à nossa espera
Acontece procurar-se um quarto para cair
Acontece haver este poema
DONATIVO
Consideremos
Os sacos de plástico deitados à formiga,
Bem como a migalha e a cinza.
Acontece dizer-se “Consideremos” e não se tratar de uma lição
Acontece dizer-se “Consideremos” e isso ser uma deslocação e não uma agência de viagens
Acontece a Elisabete usar vírgulas quando compõe os lugares
Acontece a Elisabete decompor os lugares
Acontece, no livro da Elisabete, haver, por via de Duras, a morte de uma mosca
Acontece ela ser o terror inteiro
Acontece, melhor dizendo, que
Tão mínimo acontecimento
era o terror inteiro a morder
toda a compreensão do mundo
Acontece, nesse poema, haver a parede de uma casa e uma inexplicável visão, como a mancha na parede que tanto apoquentou uma senhora num conto de Virginia Woolf, levando-a a dizer O dear me, the mystery of life!
Acontece tal ter desencandeado vastos tumultos na matéria, tempestades na civilização, até que por fim alguém junto a ela dizer I’m going out to buy a newspaper, e estávamos a meio de uma guerra. Acontece. E a marca na parede era afinal um caracol. E estávamos no meio de uma guerra. E Woolf haveria também de escrever sobre a morte de uma traça.
Acontece nos poemas de Cisco haver uma inimaginável lesma, um gafanhoto, uma aranha, outros bichos.
Acontece haver migalhas e uma folha podre e ossos, cacos e latas naufragas, outras coisas, Esquecidas sobras
Acontece assim, a certa altura:
Longe ele proferia
A distorção pássaro, ar, estrada, mão,
carros, na mão, na contra mão, o ar, como
pássaros ou estradas, qualquer coisa, insensata,
falava através de, rajadas, lacerando a frase certa
do telemóvel
Aqui acontecem vírgulas
Talvez sejam como moscas. Talvez sejam, pelo contrário, o que insiste, apesar das moscas.
Acontece também aqui uma palavra, sozinha entre duas vírgulas, ser uma lenga-lenga
Acontece também que, enquanto isso, alguém descasca cebolas.
Acontece areia e pó
Acontece um poema começar: Há o sono
e o seguinte começar Era o frio
Acontece haver o sono dento das casas e ser o frio nas antenas verticais
Mas acontece também que o sono há, antes de haver dentro das casas, e o frio é, antes de ser nas antenas.
E mais, que há, antes de haver o sono, e que é, antes de ser o frio
Acontece que haveria uma saia
Acontece que eis quando
Acontece uma ligeira fulguração
Acontece, contavam as velhas
Acontece um quase nada
Acontece sumir-se
no ligeiro roçar de cortina
Acontece a pergunta: e entrar na manhã?
Acontece Zola ter defendido Manet. Acontece Zola ter defendido Manet defendendo uma tache, uma mancha insignificante, como puro pretexto para a pintura. Acontece que Bataille escreveu depois sobre Manet seguindo o trilho improvável de Zola e assim realismo e formalismo se tocaram sob o signo da “indiferença”.
Acontece a indiferença não ser bem isso que vem no dicionário
Acontece um poema da Elisabete começar Certo dia
E mais: a certa altura desse certo dia, eram 5 da tarde. Eram 5 da tarde de certo dia e nessas 5 da tarde de certo dia, acontece alguém pousar a bica na mesa desse lugar
Acontece assim perder-se certo dia.
Acontece que
SUMIDA A NOVIDADE,
O aparelho é onde habita soberano o pó
Acontece a antropóloga Mary Douglas ter escrito o livro Purity and Danger, onde escreveu Dirt is matter out of place
Acontece a matéria ficar fora do lugar
Se há lugar para pássaros, haverá lugar para as moscas?
Ou melhor: se as moscas acontecem aos lugares, qual o lugar das moscas
Voltei aqui, obviamente, à questão
Diz-se que o pó não se limpa, só se muda de lugar
Com o pó soberano abre-se um trilho para lá de nós.
Acontece ter-se comido vagarosas amoras na infância
Acontece ouvir-se cantar:
lá vai o bicho por cima do osso comer o menino até ao pescoço
E uma mesa
Há quem diga que uma mesa é. Talvez uma mesa aconteça.
Na mesa, a sobra, conclui um poema.
A sobra faz a mesa, diria um provérbio inventado.
Acontece que certo dia, ou um canto, ou uma parede da casa, ou um poema
essas coisas
são mesas provisórias (e um dia o pó será seguramente soberano)
Acontece então Cisco começar:
Natureza Morta é como
Aqui ofereço a mesa plana
Ou talvez
Natureza morta é como?
Aqui ofereço a mesa plana
Acontece Norman Bryson dizer que a natureza morta adora a pergunta “So what?”, pergunta que tanto importuna, como mosca, o humano
E falou das mesas pintadas por Juan Sánchez Cótan como o mundo antes do nosso aparecimento nele, ou depois da nossa morte (onde habita soberano o pó, imagino)
Coisa que tanto apoquenta os humanos
E acontece ter-se perguntado: onde é que estes objectos coexistem? Qual é a vizinhança destes objectos, aqui, em cima desta mesa. Qual é tábua antes da tábua, a mesa antes da mesa?
Acontece falar-se muito de mesas
Aqui ofereço a mesa plana
Acontece Walter Benjamin ter sido colecionador.
Acontece ele ter escrito que em todo o colecionador se esconde um alegorista, em todo o alegorista um colecionador
Acontece por vezes que juntar poemas num livro é coleccionar alegorias de um lugar à nossa espera
Acontece que Borges citou uma certa enciclopédia chinesa.
Acontece que Foucault leu e riu-se
Acontece que Foucault se pôs a pensar na monstruosidade da coexistência das coisas.
Note-se: a monstruosidade não das coisas, mas do facto de o lugar onde elas se podem encontrar se encontrar arruinado
O que é impossível não é a vizinhança das coisas, é o próprio sítio onde elas poderiam convizinhar [2]
Borges, diz ele, subtrai o local, o solo mudo onde os seres se podem justapor
Natureza morta é como
Aqui ofereço a mesa plana
e Foucault começa a pensar em mesas, de que é exemplo a mesa operatória onde o guarda-chuva encontra a máquina de escrever
e dizer
as utopias consolam, porque, se não dispõem de um tempo real, disseminam-se no entanto, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades de vastas avenidas, jardins bem cultivados, países fáceis; mesmo que o acesso a elas seja quimérico.
ao passo que
as heterotopias inquietam, porque minam secretamente a linguagem, porque quebram os nomes comuns ou os emaranham, porque de antemão arruínam a «sintaxe» e não apenas a que constrói as frases mas também a que, embora menos manifesta, faz «manter em conjunto» as palavras e as coisas.
Aqui ofereço a mesa plana
(Cisco não é um país fácil)
Acontece porventura não podermos escrever senão sobre a ruína dos lugares.
Aqui ofereço a mesa plana
Acontece a poesia conseguir por vezes, numa cesura, com uma vírgula, arruinar a sintaxe e, ao mesmo tempo, preparar um lugar
Acontece preparar um lugar fugindo a ele
Acontece que se lê:
DOMINGO, SKATE PARK
(e estamos situados)
e depois
dois sapatos esquecidos manifestam
a erva desejada
e fugimos não sei para onde
Aconteceu estas coisas se juntarem quando fui convidado a apresentar este livro.
Acontece a Elisabete ter escrito este livro e estarmos aqui,
onde se oferece a mesa plana
e algum nem nada
Acontece que não sei bem o que é que quer dizer aqui
(Na minha mesa, algum nem nada)
Acontece não precisarmos de saber
Acontece, sobretudo, que ainda não esgotámos os lugares impossíveis
[1] http://stevenconnor.com/flies.html
[2] Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, trad. António Ramos Rosa (Lisboa, edições 70, 1991)